No coração do centro histórico de Sabará, ruas ganham cores, cheiros e texturas únicas no feriado de Corpus Christi. É quando a fé, o trabalho coletivo e a tradição se unem na produção dos emblemáticos tapetes devocionais. A celebração, que emociona moradores e encanta visitantes, foi o foco da pesquisa de doutorado do professor e antropólogo Frederico Moreira, apresentada no último dia 17 de junho no Teatro Municipal.
Com um olhar sensível e ao mesmo tempo rigoroso, Frederico mergulhou nas camadas simbólicas dessa prática secular. O ponto de partida? Uma inquietação da infância.
“Desde pequeno me intrigava o fato de que os tapetes, feitos com tanto empenho e beleza, eram desfeitos logo depois da missa, com a passagem da procissão. Por que se dedicar tanto a algo tão efêmero?”, relata.
A partir dessa pergunta, nasceu uma investigação profunda, que revela o Corpus Christi sabarense como muito mais do que uma tradição religiosa: trata-se de um fenômeno cultural e social que reafirma a identidade de um povo.
A festa que constrói identidade
Segundo o pesquisador, as celebrações de Corpus Christi não se resumem ao rito católico. Elas atuam como elementos de coesão e afirmação da memória coletiva. “Essa festa, como tantas outras tradições mineiras, promove o reconhecimento de nossos próprios valores. Ao confeccionarmos os tapetes, recontamos nossa história”, afirma.
Na cidade, a celebração envolve diversos setores da sociedade: moradores, artistas, estudantes, religiosos, servidores públicos e visitantes. Todos se unem para transformar as ruas em corredores de fé e beleza.
A produção dos tapetes, feita com serragem colorida, borra de café, sal, pó de PVC e até flores, começa com dias de antecedência, mas atinge seu auge na madrugada anterior ao feriado. A tradição tem força especial em ruas como Dom Pedro II e Comendador Viana, principais pontos de pesquisa de Frederico.
Tradições que resistem ao tempo
A programação do Corpus Christi em Sabará segue um ritual bem estabelecido: missa campal organizada pelas Irmandades do Santíssimo das paróquias de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Conceição, seguida da procissão que percorre cerca de dois quilômetros entre as duas igrejas. Durante o trajeto, o Santíssimo Sacramento é adorado em meio aos tapetes e estandartes vermelhos que ornamentam fachadas.
Mas a festa já mudou bastante ao longo do tempo. Antigamente, o cortejo saía da Igreja de Santa Rita – demolida em 1939 – e seguia para a Matriz. Em outras ocasiões, fazia o caminho inverso. Além disso, os tapetes eram feitos, inicialmente, com flores naturais, como o bico-de-papagaio, muito presente nos quintais sabarenses.
“Essas mudanças revelam a adaptação da tradição ao tempo, sem perder seu valor simbólico”, explica Frederico.
Lendas, rivalidades e teatralidade
Entre os achados mais curiosos da pesquisa está a lenda envolvendo a imagem de São Jorge, que teria causado a morte de um fiel durante uma procissão. Segundo relatos registrados por Isabella Menezes, do Museu do Ouro, a imagem do santo teria sido “presa” após o acidente e nunca mais voltou a desfilar. Atualmente, permanece no acervo do museu.
Outro aspecto fascinante da celebração é sua teatralidade barroca. Há, segundo o antropólogo, uma encenação simbólica marcada por rituais, vestes, expressões e até rivalidades entre grupos que produzem os tapetes.
“A cultura sabarense ainda carrega traços coloniais e barrocos. As ruas se tornam palco, onde papeis sociais são temporariamente suspensos, e o corpo coletivo da fé se manifesta”, descreve.
Durante sua pesquisa, Frederico destacou o papel de pessoas e grupos que atuam como verdadeiros guardiões da tradição. Nomes como Magda Rossi, Mônica Irrthum, Marivone, Geilson Dantas e Carlos Perácio (o Fubica) foram citados como fundamentais. Além deles, escolas públicas e privadas, artistas convidados e servidores da Secretaria de Cultura têm papel decisivo na continuidade da festa.
“Sem essas pessoas, esse patrimônio já teria se perdido”, afirma.
Educação e transmissão para o futuro
Garantir que as novas gerações se envolvam com a festa é, para Frederico, um dos grandes desafios e também uma missão possível. Ele defende uma educação patrimonial que vá além da escola, conectando jovens com a cultura de forma afetiva e prática.
“A festa é pública e, por isso, é convite. Mas precisamos criar caminhos para que ela também seja compreendida como nossa. É essencial promover políticas de valorização e reconhecimento da tradição como um bem imaterial da cidade”, diz.
Reconhecimento como patrimônio
Ao final da entrevista, o pesquisador reforça seu desejo de que o Corpus Christi sabarense seja reconhecido oficialmente como patrimônio imaterial.
“Mais do que um rito religioso ou um atrativo turístico, essa prática é uma expressão profunda do nosso saber-fazer. Ela merece ser valorizada e protegida como tal.”
Com a conclusão da pesquisa, Frederico espera que seu trabalho sirva de base para esse reconhecimento. E que a cada ano, com flores ou serragem, à luz do dia ou da madrugada, Sabará continue desenhando sua fé nas ruas — e no coração do seu povo.
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